sábado, 3 de junho de 2017

Cinemas de rua: Da luta econômica à resistência cultural

O Capitólio foi um dos cinemas de rua mais frequentados pela população  de Porto Alegre
 nos anos 1920 e, apesar do baixo público atualmente, ainda traz nostalgias da época.
Crédito: Thuane Liesenfeld.

 A bilheteria dos cinemas de rua não tem trazido muito retorno financeiro,
 mas aqueles que pagam por estes filmes não se arrependem
 de investir nessa experiência histórica.
 Crédito: Thuane Liesenfeld.

 Ainda com situações precárias e pouco público, 
a magia dos cinemas alternativos não deixam de encantar.
 Crédito: Thuane Liesenfeld.

 Cinemas de rua tem uma rica história que precisa ser preservada.
Crédito: Thuane Liesenfeld.

Referência para os cinemas de rua do Brasil, 
o Cine Caixa Belas Artes de São Paulo é um exemplo de superação. 
 Crédito: Prefeitura de São Paulo / Cesar Ogata.

Publicado originalmente no site Jornalismo Econômico, em  11/10/2015.

Cinemas de rua: Da luta econômica à resistência cultural.

Vivenciando dificuldades no meio cinematográfico, mesmo com exibições que proporcionam culturas diferentes, os cinemas de rua tem lutado uma guerra árdua para manterem suas portas abertas. Acompanhe nesta reportagem a luta das salas da capital gaúcha, e conheça o movimento vitorioso que reabriu as portas do Cine Belas Artes em São Paulo.

Por Thuane Liesenfeld
Jornalismo Econômico / Manhã

Sustentados, principalmente, por patrocínios de bancos ou órgãos públicos, os cinemas de rua de Porto Alegre como Cinemateca Paulo Amorim, PF Gastal, Cinemateca Capitólio e Cine Santander Cultural são espaços exclusivamente importantes para a cultura cinematográfica da capital do Rio Grande do Sul. Com a exibição de filmes artísticos e de nichos menos abrangentes, esses espaços oferecem uma experiência diferente aos cinéfilos apaixonados, ainda que tenham poucos recursos. Mesmo em Porto Alegre – uma das capitais que mais tem cinemas de rua no Brasil – os espaços que exibem filmes artísticos e com um viés mais cult são pouco procurados em comparação aos cinemas comerciais de shoppings. Apesar do público razoável que se interessa por este tipo de arte e com ingressos mais baratos, a bilheteria desses locais é restrita e o público diário não chega a passar de 200 pessoas em méia. A baixa renda dificulta a sustentação e restauração digital destas salas de cinema.

A primeira sala

No final da década de 1900 as pessoas se arrumavam com sua melhor roupa para visitarem o cinema Recreio Ideal, a primeira sala de cinema fixa de Porto Alegre, localizado na Rua dos Andradas. Enquanto outros espaços foram nascendo ao longo dos anos, cada vez mais pessoas descobriam seus amores pelos filmes. O Centro Histórico da capital gaúcha ainda mantêm resquícios de prédios que um dia abrigaram salas que exibiam filmes alternativos. Não precisa ser muito velho para lembrar-se de cinemas de rua que se mantiveram ou fecharam há pouco tempo.

Quem caminha pela esquina da Andrade Neves com a avenida Borges de Medeiros, por exemplo, ainda acha a construção “vintage” e a placa do antigo Cinema Vitória, criado em 1940 com o nome de Vera Cruz, e fechado em 2014. Este tipo de cinema foi o auge e o glamour de Porto Alegre do século XX. Foi um tipo de distração que alcançou muito público em pouco tempo devido ao baixo valor dos ingressos e da novidade que era assistir uma reprodução de imagens em uma grande lona com filmes como As Damas do Bosque Boulogne (1945), A Dança Serpentina (1896) ou A Chegada de Um Trem de Passageiros (1896).

Cinemateca Capitólio

Seguindo pela Borges de Medeiros, uma das avenidas mais movimentados da capital, logo adiante nota-se um prédio pintado de vermelho-alaranjado, conhecido como um dos mais antigos da cidade. Nele ainda existe um dos primeiros cinemas de rua de Porto Alegre, a Cinemateca Capitólio, de 1928.

Reinaugurado neste ano, tendo uma movimentação curiosa e ainda que não chame tanta atenção como antes, o local tem tido um público melhor do que outros cinemas de rua existentes na cidade. “O nosso maior público no Capitólio, em abril, foi 2.954. A média fica em torno de 1.500 por mês, atualmente”, confirma Leonardo Bomfim, programador do cinema e do P.F. Gastal (localizado na Usina do Gasômetro). Ainda assim, Bomfim grifa que a principal renda dos espaços que administra não vem do público e sim do patrocínio sustentado pela Prefeitura de Porto Alegre.

Santander Cultural

O Cine Santander Cultural, localizado na rua Sete de Setembro, que abriu suas portas em 2001, é outro cinema que se mantém no Centro Histórico de Porto Alegre devido a sua variedade de opções. Segundo Luciana Tomasi, uma das administradoras do local, o Santander traz filmes muito importantes que geram reflexão, são libertadores, causam discussão e que lotam as sessões comentadas.

Apesar de atrair a atenção de muitos fãs de cinema alternativo, Tomasi afirma que “sem o patrocínio do Banco Santander, não teria a menor chance de fazer as mostras e sessões comentadas, pois não renderia bilheteria”. Cinemateca Paulo Amorim  Outros cinemas do mesmo ramo, como a Cinemateca Paulo Amorim, de 1986, localizado na Casa de Cultura Mario Quintana, não tem uma média de público muito diferente do Capitólio ou do Santander.

Ainda que tenha uma programação diversificada que atrai principalmente turistas e visitantes, e ser um local de fácil acesso, a renda da bilheteria não varia da média de R$ 1.000 durante a semana e não ultrapassa a média de R$ 4.000 nos finais de semana, mesmo sustentando três salas de reprodução.

A Cinemateca, ao contrário de outros cinemas de rua da capital, não tem sustento por órgão público, e apesar de ter um patrocínio de R$ 17.000 do Banco Banrisul e uma ajuda de custo da Associação de Amigos da Cinemateca Paulo Amorim, o dinheiro mal paga os funcionários do estabelecimento.

O principal fator que contribui para a preocupação dos programadores e administradores destes poucos locais que restaram na capital é a falta de público e renda para manter estes pontos históricos e de resistência cultural. Em alguns cinemas, o sustento ainda é feito por rendas extras que cobrem com os gastos e investimentos precisos, mas no caso de outros, como a Cinemateca Paulo Amorim, o dinheiro que entra em caixa através do banco ou de associação não é suficiente e se faz mais dependente da bilheteria.

Valéria Nunes é gerente da Cinemateca Paulo Amorim, responsável pelo pagamento de todos os funcionários do estabelecimento, e afirma: “como a Cinemateca vive da bilheteria, é uma situação muito delicada. A falta de renda vindo dela pode levar ao fechamento de uma das salas, se não todas, gerando a demissão de sete funcionários”.

“Sempre será um ciclo: sem público – sem recursos – sem digitalização – sem filme bom – sem renda –  sem pagamento de distribuidoras – sem filmes – sem público”

Um fato que tem chamado a atenção dos responsáveis pelos cinemas de rua de Porto Alegre, e que tem colaborado com a dificuldade econômica, é a extinção dos filmes em formato de rolo 35 mm. Mônica Kanitz, programadora da Cinemateca Paulo Amorim, confessa que sua maior preocupação hoje é a falta de recursos para a digitalização das salas de cinema. Com o término permanente do 35 mm, a falta de opção de filmes “lançamentos de mercado” só tem agravado a baixa quantidade de público, pois as salas do cinema ainda mantêm o projetor de 35mm.

“Sempre será um ciclo: sem público – sem recursos – sem digitalização – sem filme bom – sem renda –  sem pagamento de distribuidoras – sem filmes – sem público”, lamenta. Inclusive, a situação das rendas é tão crítica para o local que Kanitz também confessa ter medo de que a Cinemateca feche, como o Vitória, por não conseguir pagar as contas e os funcionários.

De fato, praticamente quase todos os cinemas de rua da capital ainda operam com o tipo de projeção antiga. No caso do Capitólio e P. F. Gastal, Bomfim informa que tem duas limitações: ainda não há projeção em DCP (Digital Cinema Package) – o que impede a exibição de vários filmes apenas disponíveis nesses formatos – e cada espaço tem apenas uma sala. Segundo dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine), “o processo de digitalização do parque exibidor, iniciado há aproximadamente cinco anos, continua em expansão, porém o ritmo é abaixo do esperado. O ano de 2013 encerrou com 1.353 salas digitais padrão DCP, o que representa aproximadamente 51% do parque exibidor brasileiro já digitalizado”, e ainda há muito que fazer em cinemas como os tradicionais da capital gaúcha.

De acordo com a programadora da Cinemateca Paulo Amorim, Mônica Kanitz, de todos os filmes lançados no Brasil (são mais de 1.000 por ano), 56% deles pertencem a esse universo de filmes de arte, mas só tem 4% de salas digitalizadas para a exibição desses filmes.

“Olha o nicho que temos aqui! Temos espaços para exibir esses filmes só que eles são lançados em formato digital, e não temos recursos para este formato. Infelizmente, a bilheteria não rende e o patrocínio não cobre”, lamenta Kanitz.

Alternativa ao blockbuster

Desta cultura cinematográfica (de ingressos baratos, filmes de nichos e localização em ruas e becos) que se sustentam os cinemas de raiz em Porto Alegre – adorados por tantos que viveram os anos de glamour da capital e por jovens cinéfilos que gostam de experimentar novas experiências, ou repudiados por quem costuma frequentar somente cinemas de filmes blockbuster.

“Existe um público grande que sofre com a falta de opções dos grandes cinemas, que exibem os mesmos filmes e ignoram vários outros. A P. F. Gastal nos últimos anos lançou com exclusividade vários filmes grandes, importantes, premiados em festivais, que provavelmente não teriam chance em shoppings”, constata Leonardo Bomfim, programador do cinema.

Já para Luciana Tomasi, do Cine Santander, “no cinema de rua que se tem a única chance de ver cinema de arte, documentários importantes, tendências cinematográficas e filmes de autor”. A importância de manter esses cinemas, para Bomfim, é que “em primeiro lugar, o filme é a única coisa que realmente importa”, diferente dos cinemas de shoppings que muitas vezes o filme é secundário, ou faz parte de um pacote.

O programador diz que sabe que alguns filmes exibidos nos cinemas de rua são bem radicais, como os do Julio Bressane e do Tsai Ming-Liang, que não terão um público grande e nem darão retorno financeiro, mas, para ele, esses filmes precisam ser exibidos – a cidade tem que ter a chance de vê-los no cinema.  “Isso muda a forma como o espectador se relaciona com os filmes”, defende Leonardo BomFim.

Os funcionários

Manter esses locais vivos não é só importante para o público que admira essa arte “diferente”, mas também para aqueles que dependem desses cinemas para o sustento de suas famílias.

Madalena Luiza John é um dos sete funcionários da Cinemateca. Com 55 anos, trabalha no local há mais de 22 anos como bilheteira, e afirma emocionada que não tem coragem de trabalhar em outro lugar, não só devido ao tempo de experiência, mas – muito mais – pelo apego que tem ao cinema.

“Esse cinema tem história, não o vejo fechando. As pessoas que vêm aqui, todos gostam do lugar, da casa, da programação – é um espaço lindo. Tenho amigos que dizem que quando chegam à Cinemateca se sentem em casa, como se fosse um refúgio no meio do Centro de Porto Alegre. Eu me sinto assim também”, confessa Madalena.

Apesar de serem a minoria – “como 70% das salas de cinema se encontram dentro de shoppings” e apenas 14% das quase 2.500 salas espalhadas por todo o Brasil são consideradas cinemas de rua, segundo dados do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual da Ancine – eles enriquecem o folclore cinematográfico do país. Mesmo que a multinacional norte-americana Cinemark lidere o ranking de exibições e públicos no Brasil e o GNC seja um dos mais visitados, não se deve desistir de lutar pela permanência dos cinemas de rua.

“O cinema de rua está ai para oferecer uma variedade de filmes e sensações que tu não encontras em outros cinemas”, defende Mônica Kanitz. E para impedir que  esses cinemas acabem se transformando em igrejas, lojas ou agências bancárias – sem um pingo do tradicionalismo que encantou tanto o público quando descobriram a projeção – cultivar a visita a esses locais ajudará a mantê-los vivos. Pois, como Valéria Nunes, gerente da Cinemateca Paulo Amorim, deixou claro: “a principal diferença dos cinemas de rua para os de shoppings é que os cinemas de rua tem uma história magnífica que não pode ser apagada”.

Uma luta vencida  com muita mobilização

As dificuldades sofridas por cinemas de rua não acontecem somente em Porto Alegre.  São Paulo, no ano de 2013, teve um dos seus principais cinemas de rua fechado por falta de renda. O Cine Belas Artes, hoje com o nome de Caixa Belas Artes (por causa do novo patrocínio da Caixa Econômica Federal), é o tradicional cinema de rua de São Paulo criado em 1943 localizado na esquina da Av. Paulista com a Rua da Consolação.

Apesar de ser um dos locais mais adorados por cinéfilos da cidade, tendo uma média de 10 filmes em cartaz por semana e uma variação de gêneros desde filmes de arte a clássicos antigos, ainda assim teve suas estruturas abaladas quando suas portas fecharam após 68 anos de história. O local deixou sem emprego cerca de 30 funcionários.

Como consequência, iniciou-se na capital paulista um movimento pela reabertura do cinema. Cinéfilos, jornalistas e simpatizantes do espaço se uniram realizando uma das maiores mobilizações já ocorridas no Brasil em defesa de um cinema de rua. Após o ato, em 2014, a Prefeitura de São Paulo e a Caixa Econômica Federal viabilizaram a reabertura do clássico espaço que foi reinaugurado no dia 19 de julho do mesmo ano.

Confira entrevista exclusiva de Eliane Manfré, uma das representantes do Movimento Belas Artes (MBA) no Conselho de Amigos do Cine Belas Artes, concedida ao blog de Jornalismo Econômico da UniRitter.

O que foi o Movimento Belas Artes e como foi criado?
Eliane Manfré – O Movimento Cine Belas Artes se constituiu de forma espontânea com frequentadores do cinema e amantes da sétima arte que se mobilizaram para que o espaço não fechasse, depois se organizaram para reabri-lo, e atualmente trabalham para que o equipamento cultural seja reconhecido e registrado como patrimônio imaterial nos âmbitos municipal, estadual e federal. As atividades se formalizaram como movimento social na reunião realizada em 10/01/2011 em uma das salas do cinema. Na tua opinião, qual o principal marco deste movimento para a cultura cinematográfica de São Paulo? Eliane – Consideramos pelo menos três marcos divisórios: a vitória da cultura sobre a especulação imobiliária; elemento impulsionador para a criação de uma política pública para o cinema de rua com a inauguração da agência Spcine; e a solução inovadora encontrada para a reabertura do cinema, atuação social com parceria público privada.

Qual o principal fator que contribui para a dificuldade econômica dos cinemas de rua?
Eliane – A ausência de políticas públicas que contemplem incentivos fiscais, isenções e benefícios mais robustos para o exercício e proteção da atividade que não se paga por si só. Há na cidade de São Paulo uma lei que concede incentivos e isenções para o cinema de rua, porém, além de insuficiente para cobrir o valor exorbitante dos aluguéis, a lei tem sido pouco usada, visto que a Prefeitura ainda não criou uma estrutura mais ágil e menos burocratizada para aprovar os incentivos. É necessário que o planejamento e a gestão de nossas cidades estabeleçam salvaguardas para as atividades e espaços culturais. No caso de São Paulo, o MBA foi muito ativo na discussão da revisão do plano diretor estratégico (PDE), aprovado em 2014. Graças à mobilização da sociedade civil e de propostas do MBA e outros grupos, o PDE criou a figura do território de interesse da cultura e da paisagem (TICP) e a ZEPEC-APC. A ZEPEC-APC é uma zona especial de preservação cultural que irá proteger espaços culturais em função principalmente da relevância da atividade neles exercida, mais do que em função dos traços arquitetônicos do imóvel. Qual a importância de manter vivo estes tipos de cinemas alternativos? Eliane – São espaços que exercem função social, contribuem para o desenvolvimento de uma cidade mais humana.

O que os cinemas, como o Cine Belas Artes, têm que os cinemas de shopping não tem?
Eliane – Programação diferenciada com eventos regulares (Noitão, Cineclube); localização estratégica com acessibilidade através de transporte público; e preços de ingressos mais baratos. É um local de encontro que propicia o diálogo, o convívio com as diferenças e contribui diretamente para a formação de público. Desde sua reabertura em 2014, reserva uma sala para exibição de cinema nacional e mantém programação educativa para crianças da rede pública aos sábados pela manhã.  A programação educativa foi uma das propostas do MBA para que as manhãs ociosas do cinema fossem ocupadas com atividades para e com as escolas, particularmente as públicas.

Por que os cinemas de rua são dignos de serem visitados e prestigiados?
Eliane – São patrimônios históricos, culturais e afetivos da cidade. Guardam a memória pessoal e coletiva. São espaços lúdicos e acolhedores por natureza.

Como a extinção das cópias em 35 mm afeta os cinemas de rua?
Eliane – O projecionista de rolo é uma profissão em extinção. Este profissional demonstra resistência e dificuldade em se adaptar às mídias digitais. Quanto ao arquivamento de conteúdo no novo formato, é preocupante acompanhar a ausência de formatos eficazes que preservem os filmes. Corremos o risco de perder muitos registros. Ao ser reformado para reabrir em 19/07/2014, o Cine Belas Artes equipou suas seis salas com projetores digitais, mas três delas também contam com projetores de películas em 35 mm para a exibição de clássicos.

Texto e imagens reproduzidos do site: jornalismoeconomico.uniritter.edu.br

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