segunda-feira, 3 de julho de 2017

"Cinemas de rua devem inovar sem perder a essência"


  O pipoqueiro Antônio Augustino Nascimento.

 Aos 83 anos, Ely Cardoso de Barros lamenta o fechamento do Cinema Odeon.

O professor Arturo Netto.

Publicado originalmente no site Puc Rio Digital, em 06/03/2015.

"Cinemas de rua devem inovar sem perder a essência".


Por Larissa Fontes e Paula Laureano. 


O anúncio de uma parceria do grupo Estação de cinema com a Net, uma das maiores operadoras de serviços de telecomunicações via cabo da América Latina, e a reforma do Cine Odeon pelo Grupo Severiano Ribeiro, são finais felizes para a cidade do Rio, que já chegou a contar com 198 cinemas de rua, nos anos 1960. Hoje restam 16, alguns dos quais lutam para sobreviver à crise financeira que assombra produtores e entristece o público. Para manter o que restou desse patrimônio cultural e afetivo do Rio é preciso modernizá-lo, afirmam especialistas ouvidos pelo Portal; uma melhor qualidade de som e imagem, além de mobilidade e segurança no entorno, são medidas que devem ser asseguradas.

O Grupo Estação assinou a parceria 11 dias antes do seu 29º aniversário, após correr o risco de fechar. Além de aporte financeiro para ajudar a quitar as dívidas, que chegam a R$ 43 milhões, a rede, que vai se chamar Circuito Estação Net de Cinemas, passará por melhorias e expansão dos cinemas Estação Rio, em Botafogo, e do Estação Gávea. Até janeiro estão previstas as primeiras mudanças. O novo patrocínio também vai permitir digitalizar os equipamentos de projeção, fazer um novo site e um aplicativo para smartphone. Marcelo Mendes, presidente do Estação, lembra as dificuldades financeiras que já se arrastam há quase uma década. Para o sócio-fundador do grupo, a mobilização do público teve papel fundamental para sair da situação negativa (lembre a crise em Cinéfilos se mobilizam para salvar Grupo Estação):

– Foi muito bom saber que influenciamos positivamente a vida de tantas pessoas.

Viviane Vieira

 Viviane Vieira Já o grupo Severiano Ribeiro, proprietário do Cinema Odeon, prepara uma reforma do espaço e a instalação de projetores de última geração. Por questões estruturais, não vai ser possível realizar mudanças radicais, como implantar o formato stadium, preferido dos cinemas de shoppings, que permitiria uma visão adequada em qualquer assento. Mas o último cinema da Cinelândia já dispõe de um som bem projetado e moderno.

Diretor do grupo, Luiz Severiano Ribeiro garante que os cinemas de rua pelos quais é responsável vão permanecer. “Mas é preciso melhorá-los, senão o público deixa de ir”, observa. “Vou ao Cine Leblon (abaixo, também fechado temporariamente) e ouço as pessoas reclamando, insatisfeitas com a estrutura”. E pondera:

Gabriel Camargo

 Gabriel Camargo – Nenhuma capital do mundo tem tantos cinemas de rua quanto o Rio. Somente o nosso grupo contabiliza 14 salas, uma no Odeon, quatro no São Luiz, três no Roxy, em Botafogo e no Leblon. Até Los Angeles, conhecida por ser a casa das produções cinematográficas, teve seus cinemas destruídos ou transformados em lojas e shoppings, que oferecem o conforto que o público procura. O que importa é as pessoas frequentarem cinema, e terem a liberdade de escolher aonde ir.

No entanto, não são poucos os espectadores que acreditam que o shopping desvaloriza a experiência cinematográfica. Aos 83 anos, Ely Cardoso de Barros lamenta o fechamento do Cinema Odeon, único cinema de rua sobrevivente da Cinelândia. Agora, Seu Ely, que nunca abriu mão das salas na beira da rua, vai ao o Kinoplex São Luiz, no Largo do Machado, quando quer assistir a um filme.

Não frequento cinema nos shoppings, não gosto. Acho que não são acolhedoras – alega o aposentado.

Assista: Moradores da Tijuca lamentam fim das salas do bairro.

O professor de cinema italiano do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio Arturo Netto também cita o São Luiz como exemplo de que cinemas de rua podem inovar sem perder o charme:

– É um lugar simpático. Ao mesmo tempo em que é moderno, mantém uma atmosfera acolhedora. Acho que os cinemas de rua precisam passar essa imagem, fazer com que o espectador se sinta em casa.

A jornalista Patrícia Fernandes, de 48 anos, tampouco gosta de ir ao cinema no shopping. Entende que, quando se vai ao shopping, o cinema não é o foco, é sempre uma atividade complementar às compras, por exemplo. Para Patrícia, o tumulto, a barulheira e as filas imensas incomodam.

– O público também é muito diferente. No cinema de rua, as pessoas respeitam mais o ato de assistir ao filme, são mais atentas a ele e mais educadas com os outros espectadores. No shopping, é tudo mais impessoal, menos emotivo – diz.

“O cinema de rua é algo que começa e se encerra ali mesmo” – completa o crítico Marcelo Janot, que acredita que, havendo condições para que o público frequente esses cinemas, “ele vai frequentar”.

Outro exemplo de cinema de rua inovador que preserva a essência e a tradição é o Espaço Itaú de Cinema, em Botafogo, na Zona Sul do Rio. Lá, filmes de arte convivem com outros de maior bilheteria, o que atrai um público constante e diversificado. Para o crítico de cinema Marcelo Janot, essa estratégia permite ao espectador que for assistir a um filme comercial ter contato com produções alternativas. Além desse diferencial, as salas de exibição dividem espaço com uma livraria, um café e exposições. “Livros e artes incentivam a cultura e são complementares ao cinema”, acredita.

A cineasta Márcia Bessa, que pesquisou os cinemas de rua em sua tese de doutorado em memória social, tem observado a adoção de um modelo de preservação dos antigos palácios cinematográficos mantendo a maior parte da arquitetura e decoração, mas com outras finalidades. Márcia observa que os projetos de reabertura de alguns cinemas não preveem seu retorno como “pura e simplesmente cinemas de rua”, e cita o Cine Vitória como exemplo. No espaço onde o cinema funcionava foi aberta a Livraria Cultura, que mantém o nome do templo cinematográfico na fachada. Outro exemplo é o do Cine Palácio, que, reformado, será reinaugurado como teatro na Cinelândia.

Hoje os programas de revitalização estão atrelados à ideia de estruturação dos centros culturais, oferecendo serviços e entretenimentos diversificados no mesmo ambiente, viabilizando não somente sua conservação como a manutenção de atividades culturais no local, junto do uso comercial.

O comerciante Claudemir de Oliveira, de 66 anos, carrega a imagem das fachadas “incríveis” e dos candelabros de cristal guardadas na memória. Ele recorda da época em que saía direto do trabalho e entrava nos cinemas para assistir aos filmes em cartaz.

– Era só entrar. Às vezes assistia a dois filmes em um dia só, sem burocracia. Hoje os cinemas nos expulsam antes mesmo de a sessão terminar.

Quando era presidente da Rio Filme, há 20 anos, Paulo Sérgio de Almeida, hoje diretor do maior portal especializado em mercado de cinema do Brasil, o Filme B, já intuía a mudança que estava por vir. Com o surgimento dos shoppings, do conceito multiplex – filmes diferentes transmitidos simultaneamente – e de uma degradação urbana, previu que o cinema de rua estava com os dias contados. O diretor acredita que o público demorou a perceber essa crise:

– Quando fecharam 10 cinemas no Centro e na Tijuca, ninguém falou nada. Só quando fecharam na Zona Sul que começaram a se preocupar. Perceberam o desaparecimento dos cinemas de rua quando já era tarde demais. Nas principais capitais do mundo, como Nova York, Londres e Paris, não existem cinemas em shoppings, são todos na beira da calçada.

O professor Arturo Netto, por sua vez, acrescenta que a saudade e o carinho são inevitáveis, mas o público precisa entender que algumas operações, por trás do afeto, tem um custo, e precisam ser viabilizadas.

Temos que entender que o setor de exibição parte de uma iniciativa privada e que existe uma lógica de viabilidade para continuar a existir. Nenhum empresário vai iniciar uma atividade com a perspectiva de ficar no vermelho – conclui Arturo.

O que tem que ser preservado, para Severiano Ribeiro, é a experiência de ir ao cinema: “O saudosismo e o romantismo pelo cinema de rua não podem existir sem o mais importante, que é o que acontece dentro da sala de exibição”.

Na opinião de Paulo Sérgio, é preciso conciliar vontade política do governo, especulação imobiliária e demanda popular. Além desses interesses, ainda precisa-se considerar o planejamento urbano de cada cidade. Neste sentido, alterar o espaço interno não é suficiente; é necessário que o entorno do cinema de rua esteja em boas condições também. Janot diz que oferecer segurança, transporte público e estacionamento ao redor são medidas imprescindíveis para atrair mais pessoas: “É um trabalho em conjunto entre empresários e prefeitura”.

Estabelecimentos vizinhos também foram afetados pela crise dos cinemas de rua. As portas da Chopperia Cinelândia, ao contrário das do Odeon, continuam abertas, mas o encerramento das atividades do cinema afetou diretamente os lucros do restaurante, segundo Manuel Messias Polessa, garçom do estabelecimento há 11 anos. Manuel, de 50 anos, afirma que o mês de setembro era motivo de comemoração todo ano, devido ao Festival do Rio.

– Prejudicou muito o restaurante. O movimento caiu bastante, principalmente à noite. Era um mês muito esperado, porque muita gente vinha para o Festival. Este ano nem isso nós tivemos – lamenta o garçom.

“A Cinelândia levou um tombo e eu tomei marcação de boi, com ferro quente”, lamenta o pipoqueiro Antônio Augustino Nascimento, que há 31 anos trabalha em frente ao Cinema Odeon. Aos 60 anos, Antônio coleciona lembranças dos tempos de maior movimento do bairro e relata as mudanças que ocorreram diante de seus olhos. As pessoas saindo todas juntas depois que a sessão acaba é a maior saudade do pipoqueiro, que chama atenção para o vazio que ficou principalmente durante a noite. O vaso de planta que fica na esquina do cinema é a prova do abandono, segundo Antônio.

– Até a plantinha já está morrendo. Às vezes vou molhar e também pedi para o rapaz do cachorro-quente jogar a água que sobrar lá para ela não morrer – conta com tristeza o último pipoqueiro da Cinelândia.

História de altos e baixos

No Brasil, os anos entre 1920 e 1950 foram marcados pelo auge do cinema de rua, que teve como início a instalação das salas na Cinelândia. Em 1925, a cidade do Rio foi contemplada com os grandes palácios cinematográficos que começaram a ser erguidos nas calçadas, em meio ao centro urbano. Com arquitetura luxuosa, atraia olhares e conquistava o público.

Salões, galpões, teatros e circos foram o cenário das primeiras projeções. Na década de 80, os cinemas começaram a fazer parte dos shoppings, acompanhando o movimento da sociedade e buscando a otimização dos custos, a partir dos conhecidos multiplex.

Nos anos 90, em consequência do plano de estabilidade econômica do Plano Real idealizado pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso, o Brasil atraiu olhares de fora. Os players internacionais chegaram e o cinema comercial começou a se expandir. O cinema de rua, por outro lado, não atraiu mais os olhares de investidores.

Pouco mais de cem anos depois do auge, podemos contar nos dedos as salas de exibição de rua existentes na cidade. Para a especialista Márcia Bessa, a história desses espaços sempre foi marcada por dificuldades. Mas a conjuntura crítica do desaparecimento dos “movie palaces” desencadeou uma crise estrutural. No entanto, nem mesmo as inovações tecnológicas e a divisão dos espaços internos poderiam prever a saída do cinema das ruas:

– Os palácios cinematográficos entraram em xeque com a contemporaneidade.

Segundo Márcia, tudo está em um constante processo de mudança no que diz respeito à experiência cinematográfica, desde as imponentes fachadas ao acender das luzes. A pesquisadora afirma que as poucas salas sobreviventes se transmutaram e “parecem ter sua morte anunciada nas ruas para viver nos shoppings”.

Segundo Arturo Netto, é inegável a relação afetiva com as salas, mas é preciso ser racional, já que cinemas, como qualquer negócio, precisam de rentabilidade e retorno:


– Muita gente tem uma relação afetiva com o local pelo doce prazer de passar em frente e ver que a casa está aberta. Mas abraçar o cinema não é suficiente. É preciso frequentar para mantê-lo vivo. Afinal, essa é a razão de ele existir.

Texto e imagens reproduzidos do site: puc-riodigital.com.puc-rio.br

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