terça-feira, 29 de agosto de 2017

Cineteatro São Luiz, em Fortaleza - CE.






Publicado originalmente no site Especiais O Povo 

Já vi esse filme...

Tapete vermelho para o velho projecionista passar. Às vésperas de completar 72 anos, com olhos rasos d´água e beca de convidado especial, José Natal Marcelo de Oliveira (1942 - 2017) alcançou, orgulhoso, a noite oficial de reabertura do Cine São Luiz, em 25 de dezembro de 2014. Restaurado em seus minuciosos detalhes cênicos, técnicos e decorativos, à luz de um nada acanhado projeto arquitetônico original, o “xodó” do Grupo Severiano Ribeiro, empresa-símbolo do espetáculo cinematográfico no Brasil, caía-lhe novamente no colo como que embrulhado para presente, em reverência àquele que, ao longo de 43 anos, precisamente entre 1962 e 2005, projetou, solitário da cabine escura, uma lista incontável de filmes para plateias igualmente diversas e sempre tomadas de encantamento diante da suntuosidade e beleza ímpares do maior e único cinema de rua de Fortaleza – um “templo” incomparável de 1.200 lugares.

O início

Capricho do dono do negócio, o cearense Luiz Severiano Ribeiro (1886-1974), que apostou todas as fichas de empresário visionário na maior diversão do novidadeiro século XX para, em 1958, já firmado no mercado nacional, cravar, em estilo art-déco, com toda a pompa e circunstância, sobre o chão da Praça do Ferreira, no centro de Fortaleza, a sua mais vistosa assinatura. Demorou, mas chegou. Mais de 20 anos se passaram entre o anúncio e a confecção do projeto arquitetônico do São Luiz, ainda em 1935, e sua concretização. Tempo que abriu espaço para lendas, superstições, galhofas e críticas. Há quem diga que a Segunda Guerra Mundial e a dificuldade de importação botaram abaixo a empreitada. Mas também há quem garanta que ali tem dedo de uma certa cartomante que previu a morte de um supersticioso sr. Ribeiro tão logo ele inaugurasse o cinema em Fortaleza.

Valeu a espera. Quando o cine São Luiz finalmente “desencanta”, para abrir as portas em 26 de março de 1958, o projeto do arquiteto cearense radicado no Rio de Janeiro, Humberto da Justa Menescal, é festejado como se tivesse acabado de saltar da prancheta, atraindo todas as loas esperadas de público e crítica, que também se renderam sem reservas à decoração do salão assinada por Osório Ferreira e Marcelino Guido Budini, bem como à pintura ambiente farta em douramentos da firma Schaffer & Harvath.

Luxo a olhos vistos. O auditório de 2.653 metros quadrados era do chão ao alto uma obra de arte, embasbacando a sociedade de fino trato obrigatoriamente levada a vestir paletó e trajar vestidos longos para adentrar o recinto, além de pagar ingressos que poderiam custar entre 12 e 20 cruzeiros, quando um jornal à época não saía por mais de 3. O cinéfilo e pesquisador Ary Bezerra Leite, autor do livro A Tela Prateada, Ary Leite dá detalhes: “palco com recursos para teatro, acesso pelo imponente hall e escadarias para o balcão, realçados pelo piso e revestimento em mármore de Carrara, por lustres de cristal tchecos e ricos tapetes. A qualidade de projeção resultava da excepcional tela de 14 metros, dois projetores americanos com projeção em cinemascope e lentes planas, com lâmpadas Xenon e sistema de som estereofônico de quatro faixas, totalizando 30 caixas de som. Impressionavam igualmente as salas de espera em dois níveis e a temperatura ambiente controlada por duas máquinas de ar-condicionado da marca Carrier com capacidade de 60hp, uma verdadeira novidade para a época, já que as demais funcionavam à base do ar-refrigerado, quando muito”.

Não à toa, segundo o pesquisador, o ritual de inauguração do São Luiz atraiu todos os olhares, tendo como centro das atenções o próprio dono do negócio, Luiz Severiano Ribeiro, e seu filho, Ribeiro Júnior, cuja chegada no aeroporto Pinto Martins, em Fortaleza, foi devidamente documentada em audiovisual. Uma noite memorável para seletos convidados, com direito a cordão de isolamento a fim de conter o frisson da turma do sereno, espremida nos arredores da Praça do Ferreira. Às 21h30min, a plateia de moradores e visitantes renomados lotou o confortável salão de poltronas vermelhas para assistir ao filme Anastácia, a Princesa Esquecida, produção americana dirigida por Anatole Litvak, com Ingrid Bergman no papel-título, já agraciada com o Oscar de melhor atriz em 1956.

A partir do dia 27 de março de 1958, lembra Ary Leite, o São Luiz abriu as portas ao grande público. Em clima de festa, exibiu dia após dia um pacote de nada menos do que 28 películas, tendo entre os clássicos O Homem que Sabia Demais e Ladrão de Casaca, ambos de Alfred Hitchcock; O Manto Sagrado, de Henry Koster, primeiro filme na história do cinema realizado com cinemascope e som estereofônico; Juventude Transviada, com James Dean; Ama-me com Ternura ou Love me Tender, com Elvis Presley; Luzes da Ribalta, de Charles Chaplin, entre outros tantos. Foi início de um ciclo de disputadas exibições com filas de dobrar o quarteirão numa época em que filmes em cartaz no São Luiz não podiam ser exibidos nos demais cinemas da cidade, a partir dali considerados de segunda ou terceira categoria, o lugar da classe média e da arraia miúda.

E se o público inaugural do São Luiz tinha que vestir paletó e gravata para adentrar o recinto, além de portar-se civilizadamente, o rigor era o mesmo internamente, com vistas a manter a ordem e a disciplina. Seu Natal, o projecionista, ainda chegou a contar: “Tive contato com o primeiro Ribeiro umas cinco vezes. Ele me recebia muito bem. “Como o sr. tá?”. Também com o Ribeiro Jr. Ele vinha todos os anos, se hospedava no hotel. E de noite rodava os cinemas. Uma vez foi barrado pelo porteiro novato. Era muito rigorosa a portaria. Nesse tempo, não tinha roleta nem nada. Só uma correntezinha e a urna. Aí ele chegou e disse que era Luiz Severiano Ribeiro. Aí o porteiro: “um momento, vou chamar o gerente, o sr. não pode entrar”. Quando o gerente desceu as escadas e viu o seu Ribeiro do lado de fora quase caiu lá de cima. Aí disse pro porteiro: “olhe, esse é o seu patrão, o proprietário do cinema!”. Sabe o que o seu Ribeiro fez? Chamou o gerente e disse: “olhe, o trabalho foi maravilhoso, ele está cumprindo as normas da empresa”. E virou-se pro porteiro: “você não me conhece, eu moro no Rio e é isso mesmo, não podia me deixar entrar”. Eles era muito rigorosos como patrões, mas sabiam agradar”.

Causo

Entre envergonhado e jocoso, seu Natal narrou ainda o dia em que todos no cinema falharam ao não perceber a entrada clandestina, provavelmente dentro de algum paletó, de uma galinha viva no recinto. Prova inconteste da inoxidável molecagem cearense.  “No São Luiz, tinham seis policiais tomando de conta à tarde e seis à noite. As multidões eram grandes. Aí teve a exibição de um filme romano, cedo a fila se formou, passando da Guilherme Rocha. Eu subi, o gerente disse que podia começar a projeção. Com 30 minutos, telefonou lá de baixo pra cima. “Pare imediatamente a projeção”. Acenderam as luzes. Veio polícia de todo jeito. “Quem foi, quem não foi...” Só se soube depois: jogaram uma galinha lá de cima do cinema, uma monstra, que foi bater na frente da tela. O gerente mandou botar numa caixa, os lanterninhas correram e levaram. Nunca descobriram quem foi. E no outro dia, o gerente ainda chamou reunião pra dizer que foi a galinha caipira melhor que ele já havia comido”, riu-se.

O “Seu Luiz” é nosso!

Relicário que faz lembrar. Mas não somente. Tombado e protegido como patrimônio histórico estadual, o cine-teatro São Luiz, adquirido e recuperado pelo Governo do Estado do Ceará, através de sua Secretaria da Cultura, rompe o século XXI pleno de vitalidade, acolhido por públicos diversos e radicalmente aberto à pluralidade de linguagens artísticas e manifestações culturais.

Há pouco mais de dois anos na direção do equipamento, hoje aberto de terça-feira a domingo e funcionando como cine-teatro, dupla função originalmente prevista no projeto arquitetônico de 1935, a gestora Rachel Gadelha se dedica a virar a página de um espaço que nasceu concebido para uma elite e tem como desafio e exigência a plena abertura à diversidade cultural.

Plural e democrática, a programação vem contemplando não só o audiovisual e as artes cênicas, como também a música, as culturas tradicionais populares, a literatura, o circo, o humor, a dança e as artes híbridas. É gratuita a maior parte da programação do São Luiz. E, quando não, são cobrados preços populares em shows e eventos especiais. Assim, há quem chegue de carro, ônibus, bike ou a pé.

Cine que educa

Em parceria com as secretarias de educação do Estado e Município, o projeto Escola no Cinema desponta como um assumido xodó da atual direção. Pelo menos duas vezes por semana, o São Luiz foca em exibições gratuitas de premiados curtas-metragens brasileiros com temáticas infanto-juvenis, lotando os mais de mil lugares com estudantes de escolas públicas e privadas da Capital e do interior devidamente acompanhados de seus professores.

Em 14 meses de exibições, o projeto já atendeu a mais de 50 mil alunos de pelo menos 400 escolas. Desse público estudantil, 70% nunca havia ido ao cinema e 95% desconhecia a existência do São Luiz. Segundo a diretora, o projeto Férias no São Luiz tratou de diminuir esse abismo. Durante o último mês de julho, o cine-teatro recebeu um público de 26.917 espectadores em 48 sessões especiais de cinema voltadas ao público infanto-juvenil. Considerando as demais linguagens, 32.088 pares de olhos curiosos se deleitaram com a programação e o lugar.

São Luiz dia a dia

O projeto “Clássicos São Luiz” é outro sucesso de público, atraindo as mais diversas gerações. Filmes como Titanic, Ghost - Do Outro Lado da Vida, Tubarão, Pulp Fiction - Tempo de Violência, Rocky, Um Lutador, Superman e Taxi Driver são vistos ou revistos envoltos em uma aura de “acontecimento”. A imersão coletiva em meio às Maratonas de cinema também. É a oportunidade de rever todo o Star Wars, todo o Senhor do Anéis, todo o Indiana Jones. Com direito a fã-clube fazendo fila logo cedo lá fora, aplaudindo no meio da projeção a cena predileta e até entrando no recinto com o figurino de seu personagem-ídolo ou uma espada luminosa a tiracolo. Performances inimagináveis no São Luiz de outrora, onde qualquer manifestação ruidosa ou comportamento extravagante era reprimido.

Hora do almoço. Às quartas-feiras, o São Luiz é o lugar da melhor digestão, na esteira do Curta o São Luiz, projeto que contempla desde o teatro de bonecos até as apresentações de música erudita e canto lírico. Uma caixa de som é colocada lá fora e bastam ressoar os primeiros acordes para transeuntes, moradores de rua, comerciantes e trabalhadores em geral se deixarem atrair e fascinar pela joia rara que muitos não sabiam existir ou poder acessar até então. O mesmo vale para o Curta mais Teatro, onde artistas e grupos do Ceará e outros estados se apresentam mensalmente.

Foco particular na Sessão Sonora. “É a cara do São Luiz, justamente porque ele é um dos poucos cines-teatros em funcionamento no Brasil. Acontece espaçadamente aos domingos, quando exibimos um filme seguido de show musical. Por exemplo, teve os 40 anos do filme Help. Ou uma efeméride ligada à Luiz Gonzaga. Daí primeiro a plateia assiste ao documentário e, quando acaba, aquela tela sobe e imediatamente a banda já está posicionada no palco para começar a tocar. É emocionante”, testemunha Rachel, destacando ainda a qualidade e diversidade de shows musicais que lotaram o São Luiz e fizeram chegar ao local desde um arrojado Liniker até a clássica diva Ângela Maria.

“É preciso coragem para ser aberto e diverso. Nossa curadoria é coletiva, procuramos atender as demandas de artistas e produtores culturais e também das pessoas que entram no Facebook e dão sugestões ou exigem mesmo a presença de seus ídolos no São Luiz. Somos muito demandados. Mas apesar de desafiador isso é um bom termômetro. Sinal de que o São Luiz está sendo apropriado pela cidade cada vez mais, tanto assim que muitos acessam a nossa página se dirigindo ao São Luiz como se ele fosse uma pessoa, o Seu Luiz, sabe? E a ideia é mesmo essa, fazer do São Luiz uma grande casa acolhedora, um lugar de convergência de todos os bairros e o grande indutor de uma ocupação vital, potente e múltipla do centro da Cidade”, defende a diretora.

Números

No dia 25 de julho, em dois anos e dois meses desde a sua reabertura diária pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, o Cineteatro São Luiz alcançou a marca de 200 mil espectadores de cinema (com os filmes brasileiros ocupando 43% da grade da programação) e 335.000 espectadores em todas as linguagens (incluindo shows, sessões sonoras, espetáculos circenses, musicais, entre outras).

Texto e imagens reproduzidos do site: especiais.opovo.com.br

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